Vida. Aquele jogo que ninguém te ensina a jogar. Em que pessoas diferentes seguem diferentes caminhos na procura de alguém para amar. Algumas vão-te deixar e outras vão ficar, mas todos temos medo de deixar alguém entrar.
Às vezes pergunto-me se é normal esquecer-me do porquê de cá estar. Ou se alguma vez soube, sequer. Falta-me a inspiração, o romance. Falta-me poesia. Mas já ninguém lê poesia – já ninguém se perde no romance da vida. Na Era em que o coração trabalha mas não sente e o supérfluo alimenta a fome de querer ser com ter, o medo é a nova palavra do dia – camuflada pelo silêncio que nos ajuda a olhar e esquecer. A desviar a consciência daquilo que pensamos não conseguir resolver.
Não conheço o propósito destas palavras e gostava de não me rever nelas. Da mesma forma que cada vez menos conheço o propósito do mundo e gostava de não me sentir tão perdido nele; que gostava de ter coragem de amar mais e não conseguir, por vezes, ver esse amor em mim. Mais vezes do que gostava de admitir torno-me naquilo que menos gosto nas pessoas – nado para longe de quem sou ao lado de pessoas que me fazem sentir menos que eu próprio. O Norte destas palavras alude-me à medida que esfrio o meu lugar no mundo. Não sei necessariamente onde quero chegar com isto, e talvez seja esse o problema.

Dezoito em cada vinte pessoas vivem sem objetivos. Por outras palavras, 90% das pessoas, hoje em dia, não sabe responder à seguinte questão: “Porque é que te levantas da cama todos os dias?”. A composição dos nossos pensamentos constroem a pessoa que somos e são a primeira ponte para a manifestação das nossas intenções, desejos, objetivos, medos, angustias… a decisão é nossa. A sociedade em que vivemos é desenhada a partir do seu nível mais rudimentar. É criada e desenvolvida para nos ser possível, de uma maneira relativamente acessível, criar uma vida para nós próprios que nos permita ter acesso a uma educação base, saúde e sustento para suprimir as nossas necessidades básicas. Depende de nós perceber e tomar a iniciativa do quão acima dessa linha queremos estar. Todos nascemos em circunstâncias diferentes e todos temos as nossas batalhas, mas cabe a cada um de nós perceber até que ponto vamos permitir sermos definidos por elas.
O acto de existir é indiferente à expressão que damos à vida. O romantizar associado à escolha aleatória ou de mais aquando do processo de vir ao mundo e os moldes em que tal acontece é um dos mais debatidos tópicos que atormenta a cabeça do homem desde que o mesmo tem memória de pensar. Porque nasci eu neste país, nesta família, neste ponto específico na cadeia social? Porquê tu e não eu? Porque não sou eu a passar fome num sítio distante onde os olhos do mundo se “esquecem” de olhar? Porquê?
As questões que orbitam à volta daquele que é o enigma da nossa existência são variadas e complexas. Vão desde a nossa origem de existir, até ao propósito dessa mesma existência. Embora possamos na nossa mais ou menos vaga compreensão do factual e maior ou menor ligação à nossa imaginação e curiosidade tentar decifrar a nossa origem, cabe apenas a cada um de nós descobrir qual o propósito que escolhemos dar à nossa curta passagem neste veículo de vida a que chamamos “Terra”. O sentido da verdade mudou de rumo ao longo da historia para servir, acima de tudo, os nossos medos. A verdade como um símbolo objetivo chega hoje até nós depois de um caminho longo e sangrento. Uma luta que, acima do conhecimento, procurou garantir que cada um de nós tem a liberdade de escolher aquilo em que acredita e usar essa mesma liberdade para chegar todos os dias um pouco mais perto de libertar aquela que é ao mesmo tempo a nossa maior prisão e ponto de partida – a mente. No entanto, 90% de nós prefere a prisão.


Fomos nós que construímos o sistema em que vivemos hoje. Criado a partir da destruição, pois o homem tem uma relutância natural para a mudança espontânea e ativa. A herança social de uma pessoa que nasce nos nossos dias tem milhares de anos. Milhares de anos em erros, passos em falso, sucessos e fracassos. Milénios de progresso do inato – aprendido na cozinha lenta da historia evolutiva do homem que resulta no mundo em que vivemos hoje. Uma sociedade que, embora longe de perfeita, representa a melhor construção objetiva criada pelo homem. Se tal como a mim esta afirmação te faz levar as mãos à cabeça, então é tempo de pensar qual o papel que estás a ter para deixares o mundo um pouco melhor do que como o encontraste. Os passos que dás e dão vida aos objetivos que te vão levar mais perto da pessoa com que sonhaste.
Sinto-me tentado a apreciar sentir-me perdido num mundo que parece não querer saber de si. Não gosto de me sentir um aventureiro cada vez que decido sentir e, acima de tudo, agir perante esses sentimentos. Choro quando vejo ao espelho a máscara que sustenta a minha sanidade. Este é o jogo em que lançamos os dados e nos esquecemos de jogar – a vida que vive de amar. Eu tento e vou continuar a tentar até o meu coração se cansar de trabalhar. Porque um dia deixarei de existir, mas viverei para sempre no coração daqueles que toquei nos momentos em que a minha máscara me deixou respirar.
5 respostas para “Todos temos medo de deixar alguém entrar”
Texto maravilhoso. Mas ainda há quem leia poesia, eu. Obrigada pela tua música e por este texto.
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Lindo texto! 🙂
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“Porque um dia deixarei de existir, mas viverei para sempre no coração daqueles que toquei nos momentos em que a minha máscara me deixou respirar”. Escolhi apenas um excerto, o último, mas praticamente todo o texto é de uma prosa poética a merecer ser publicada.
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Demorei um pouco a comentar o teu espaço, porque senti que é preciso aqui entrar apenas quando estamos de mente limpa. Este é para mim, o texto com o qual melhor me conecto e onde descreves com mestria o maior receio de um ser humano… deixar alguém entrar no coração. Talvez porque ao deixarmos tantas vezes a porta aberta, ficamos cansados de ver as nossas sombras partirem para longe. Com elas partem aragens, sorrisos e muitos aromas secretos. Ficamos vazios e ocos por dentro, esperando novos afectos dignos de nos preencher. Mas deixar sempre a porta aberta faz que o mundo continue firme a girar em contra mão… É essa a magia. Girar sempre sem direção. 😊 Continua a girar as tuas interrogações com muita força ao som das teclas do teu piano e a arranhar notas com garra nas melodias da tua guitarra… O mundo agradece. 🌟Abraço mental
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Voltei aqui, quase 6 meses depois de ter lido este texto. É incrível perceber que já se passaram 6 meses, e como o tempo passa depressa e tudo muda. Se há algo, com que sempre me conectei, é a forma como tu escreves… Visceral, profunda e sobretudo fruto de uma reflexão interior muito densa. É assustador e corajoso, conseguir penetrar tão fundo dentro de nós próprios. A tua escrita transmite isso, a densidade das camadas, que interiormente consegues atravessar. E isso acontece, tanto na poesia como na prosa. Quando tentamos atingir essa profundidade com as palavras, a primeira reacção é tentar fugir com receio do que iremos atingir. Mas quando, nos aventuramos a mergulhar na escuridão, descobrimos, que mesmo com medo, esse mergulho é terrivelmente libertador. E quando o faço.. Faço-o sem saber nadar e por isso, muitas vezes, fico à deriva. Mas ficar à deriva, também nos obriga , a pensar como reencontrar, novamente, o caminho. É assim, que a escrita mais pura deve ser, um pequeno barco destemido, a rasgar as ondas.
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